No meu bairro não preciso de relógio. Como nas aldeias, os sinos das igrejas encarregam-se de me avisar. Soam de meia em meia hora.
As ruas desenhadas de basalto, flúem em curso em direcção ao rio, serpenteando as casas e originando os caminhos sinuosos por onde todos os dias tenho que passar.
O pequeno comércio fervilha logo pela manhã. Entre os pregões das peixeiras e as pechinchas do freguês, as mulheres fazem as compras e é frequente ver os homens a lerem as gordas nos jornais.
Ao fim das tardes quando é Inverno os estorninhos regressam às árvores para pernoitar. Voando em grandes bandos, mudam repentinamente de direcção e originam curiosos desenhos e padrões nos céus da cidade.
Com o fim da tarde chega à noite e com a noite chega o Fado, conferindo ao meu bairro um ar romântico.
As pessoas é como se não tivessem nome. São conhecidas pelas suas alcunhas. Muitas delas adquiridas logo ao nascimento mesmo antes da personalidade jurídica.
Da minha janela, para além de ver o Tejo, vejo-as passar. Imagino como são as suas vidas. Conheço as suas alcunhas mas mais não sei.
Então ponho-me a imaginar. Sonho acordado e como jamais me esquecerei do “O que diz Molero” de Dinis Machado (1977), encontro de imediato resposta às minhas perguntas. De um momento para o outro parece que os conheço a todos. Respiro fundo fecho a janela e volto para dentro.
“O que diz Molero” é uma obra-prima que retrata de forma acutilante o país e as mentalidades de há 30 anos mas que ainda permanece actual.
Na realidade o bairro que Dinis Machado descreve pode ser o meu, mas pode ser qualquer um de Lisboa. O livro, que nos leva a sonhar, consegue ser simultaneamente trágico, cómico e poético.
“O que diz Molero” é obrigatório. Como o Gonçalo Mira escreveu no seu Blog, “…é um hino aos portugueses dos bairros, aquelas personagens peculiares com quem todos nós já nos cruzámos…”.
Mas se até este momento do texto tudo está bem, daqui para a frente tudo ficará mal.
É nos Santos Populares que eu aproveito para me pirar para qualquer lado menos ficar em Lisboa e muito menos em Alfama.
Aqueles que durante todo o ano nunca trabalharam começam agora a preparar as suas barracas. Fazem-se contas à vida porque afinal vai entrar uma receita extra proveniente do exterior. Livre de impostos e de licenças, há que ganhar dinheiro o mais depressa possível e com menos esforço possível. E assim com a chegada dos Santos Populares, começam as guerras e as intrigas entre a vizinhança.
No largo da Igreja “lava-se a roupa suja”. Invocam-se ódios antigos. Insultam-se em ping-pong. Descarrega-se como se pode e como se sabe. Soltam-se as frustrações de toda uma vida de insucesso e de azares.
As crianças, que já deviam estar deitadas, assistem habituadas às discussões. Aprendem desde cedo a compreender quem está do lado da sua família ou quem está contra. Serão elas as protagonistas em poucos anos.
No final, o ódio dá lugar ao júbilo com a chegada da notícia da vitória da marcha. Mas ficam guardados. Porque para o ano há mais.
Mas afinal não é a tudo isto que chamamos de bairrismo popular? Ou será antes a promiscuidade popular?
Não nos importamos! Até gostamos! É como se nos sentíssemos superiores porque moramos com famílias de bem em casas de bem e em bairros de bem, mas na noite de Santo António convergimos para lá para ver o que se passa. É quase como ir ao jardim zoológico ou à feira popular.
Não nos importamos de ficar na fila para comer sardinhas inflacionadas. Nem pomos em causa a higiene dos alimentos ou a simpatia de quem nos atende. Não nos importamos de ouvir música popular tocada por quem não sabe tocar.
A tradição já não é o que era. Em vez de pombos nas ruas temos pitbulls açaimados e dançamos ao som da kizomba em vez das marchas populares.
A malandrice e o chicoespertismo mantêm-se. Esses permanecem iguais aos do relatório do Molero.
É nos Santos Populares que eu aproveito para me pirar para qualquer lado menos ficar em Lisboa e muito menos em Alfama. (Já tinha escrito isto, não já?).
No comments:
Post a Comment