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Saturday, May 24, 2008

Shame TV

Com o comando percorri os canais todos da lista e por fim desliguei a televisão. Virei-me para ela e disse-lhe:
- “Só dá merda!”.
Ela respondeu-me:
- “Já sabes que dá para que é que a ligas!”

Nessa noite fizemos amor mais cedo e por mais tempo.
Há uns que no fim puxam de um cigarro, eu puxei do "Caminho para Marte" do Eric Idle e como se tivesse estado à minha espera escrevia assim:

“Como se sente? Passou a ser a pergunta mais frequente nos ecrãs de televisão. Não importa se é feita no fim de um jogo de futebol ao jogador que falhou uma grande penalidade ou se é feita a alguém na rua que acabou de saber que toda a sua família morreu num acidente de viação.
As emoções passaram ao domínio público e o espectáculo do choro em directo pode ser visto em todo o lado.
Começando pelos telejornais, há muito que os directos televisivos já não servem para cobrir a notícia. Servem para insistir na pergunta “como se sente?” Não importa saber quantos meios estão envolvidos num incêndio. Importa ouvir e ver lavado em lágrimas o homem cujos bens amealhados ao longo de cinquenta anos desapareceram com as chamas.”

– "Tens que ler isto" – Disse-lhe em vão. Afinal as festas no meu peito há muito que tinham terminado e eu nem sequer dera conta. Tal como ela, a sua mão descansava no sono. Extenuada.

“Mas são nos talkshows e programas da manhã que a pergunta é feita com mais insistência.
De repente as emoções passaram ao domínio público. Para homens, tornaram-se compulsivas. Estabelecer contacto com o nosso lado feminino era o lugar-comum preferido das revistas. O espectáculo lamentável de homens lavados em lágrimas estava por toda a parte.

Quem quisesse, nem que fosse vender um livro, tinha que chorar num talkshow. Os atletas não eram ninguém se não tivesses sido vistos a chorar na televisão, as estrelas de futebol soluçavam em campo, os comediantes choravam copiosamente, os presidentes dificilmente podiam dirigir-se à nação sem lágrimas nos olhos. Quem não conseguisse fazê-lo, o melhor era fingi-lo, porque isto era a reality tv.

As celebridades chafurdavam as emoções públicas como javalis num charco lamacento. Por isso, sim a culpa era novamente da TV, alterando comportamentos, baixando os padrões de qualidade, intrometendo-se, falsificando, expondo. As emoções tornaram-se a imagem de marca de intermináveis abutres da TV, as Medeias dos media com os seus penteados armados e os seus sorrisos refrigerados. Como é que sente? Era a pergunta que era feita após alguém ter marcado um golo, ou após lhe dizerem que toda a sua família tinha parecido na queda de um avião. Picadas e espicaçadas. Como é que sente? Municiadas e preparadas. Como é que sente? Até as lágrimas rebentarem e a pobre da vítima receber a sua bênção da loira rainha do show. Passa o Kleenex, checa as audiências, passa o saco do vomitado, faz favor.

Os homens não eram de forma nenhuma as únicas vítimas deste sequestro por parte dos abutres, e de qualquer maneira, já andavam a pedi-las. Havia imensa gente a contar as porcarias das suas vidas a toda a gente, numa altura em que os homens se descobriam, quiçá pela primeira vez, vulneráveis a formas particularmente públicas de vingança feminina. As mulheres, assim parecia, mal podiam esperar por ir para a cama com alguém para começarem a escrever cartas, guardando souveniers manchados de sémen para apresentar como prova no tribunal ou no estúdio, não interessava qual, visto que ambos estavam agora na televisão. Sharon revela tudo. Fotos nuas da rapariga que fodeu o país. Leiam o livro do broche. Notícias às 20.00 – Sexo, escândalo e o tempo que vai fazer. Era, evidentemente, a total destruição da privacidade. Vida privada – isso era afinal de contas um conceito vitoriano, e foi pela janela fora com a TV e o computador. As duplas Idades tinham chegado, nada era privado. Eu podia conhecer o registo bancário do leitor, o seu saldo, os seus padrões de compra, o seu endereço privado; gaita eu podia até assistir online ao seus orgasmos.”

Três da manhã. Apago a luz.

Será que alguém assistiu aos nossos orgasmos?
Antes de poder concluir qualquer coisa, também eu me juntava a ela.


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