Faltou-me defendê-la com garras e determinação. Mas nas várias oportunidades que tive preferi sempre o óbvio. Fiquei-me pelo epíteto das coisas. Pela mera palavra que acompanha o substantivo, determinando-o ou qualificando-o. Adjectivei.
Faltou-me saber convencer. Ter crédito no falar. Faltou-me segurança e autoconfiança no discurso. Faltou pensar antes de abrir a boca. Olhar nos olhos das pessoas e antecipar a resposta à pergunta.
Faltou o poder comunicativo. Exprimir-me com clareza e não ser ambíguo. Faltou-me ter a certeza, a firmeza, a convicção, mas sem nunca perder a calma, a tranquilidade de espírito.
Faltou-me decidir a minha vida por mim próprio. Não me ter deixado influenciar pelos outros. Não deixar que me escolhessem o destino. Deveria ter pensado nas propostas profissionais que tinha e ter questionado as condições que iriam pautar o meu percurso. Faltou-me não ter entrado num mundo que não conheço e para o qual não estou talhado.
Faltou-me a capacidade de lidar com uma criança. Com os filhos que não são meus. Faltou-me ser também criança só por uns instantes. Compreender a sua linguagem, as suas perguntas e os seus pedidos de ajuda. Faltou-me jeito, dedicação e devoção. Faltou-me psicologia infantil. Saber olhar para a sua ingenuidade e registá-la como um momento único. Faltou-me ser amigo, ser companheiro, ser carinhoso. Faltou-me fazer parte da sua vida. Tornar-me numa referência na sua educação. Dar o devido desconto quando necessário. Saber castigar, saber impor regras. Saber ensinar.
Faltou-me ouvir "o rumor dos pinhais, o azul dos montes e todos os jardins verdes do mar". Faltou-me o ar livre e a vida saudável. Faltou-me despertar com a bicharada. Andar nu pelas dunas. Contemplar as estrelas no céu em vez de contar as estrelas dos hotéis. Mergulhar nas nossas águas em vez de ir para os Spa´s dos outros.
Faltou-me compreender o espaço por onde me movo para poder chegar dentro de mim. Faltou-me fazer as pazes com a natureza. Respeitá-la e compreendê-la.
Por entre novas madeixas e de mais um acessório de moda esqueci-me de mim. Do meu interior.
Faltou-me superar a mim próprio. Desafiar os meus limites. Aventurar-me. Faltou-me o desporto, os eventos radicais e a adrenalina.
Faltou-me cultivar o corpo. Cultivar a mente.
Faltou-me filtrar os sons. Ser mais exigente com o que escuto. Não me resignar aos ritmos fáceis, às melodias pré-fabricadas e às letras previsíveis das canções. Faltou-me treinar o ouvido para acompanhá-la na grande orquesta que é a vida. Faltou-me partilhar com ela a mesma banda sonora.
Faltou-me contrariar as modas. Saber virar a cara ao que nos põe nas monstras. Faltou-me inovar no vestir, no calçado, nos acessórios. Tirar partido das estações do ano retirando o que estas têm de melhor.
Faltou-me charme e classe. Faltou-me a elegância e a espirituosidade do momento. Captar a energia do ar, encher o peito e com o meu suor contagiar o mundo de alegria.
Faltou-me vaidade. Querer estar sexy, provocador, irresistível. Produzir-me para mim, para ela e para todos.
Faltou-me não deixar que a vida me tornasse num ser vulgar e amórfico.
Faltou-me o devaneio do corpo. Tomar-te de assalto e reclamar o que é meu. Faltou picante e tempero numa carne que deveria estar louca de desejo. Faltou introduzir novidades. Renovar. Repetir, repetir, repetir.
Faltou-me desinibir. Não estar cansado e esbanjar prazer como se o mundo fosse acabar. Faltou-me andamento. Despudor. Faltaram-me os outros orgasmos que ficaram por sentir. Faltou-me querer mais.
Faltou-me a boca certa para não ter que colocar estas palavras.
Faltou-me tudo. Faltou quase nada.