Foram as suas últimas palavras que registei. Foram me ditas assim sem mais nem menos. Não foram consequência de nenhuma discussão. Por isso não foram ditas aos gritos ou sobre exaltação. Talvez por isso não as tenha dita a chorar. Talvez por isso também não tenha chorado.
Nem queria acreditar. Tínhamos estado a jantar num restaurante de bairro em Lisboa. Nada indicava tal despedida. Tínhamos estado a falar sobre coisas recentes como dois amigos que não se vêm há semanas. Ela falou-me do seu novo trabalho e eu sobre os meus projectos. Pedimos a conta, pagámos e saímos.
Ainda bem que não lhe perguntei “In my place or in your place?” como costumávamos fazer na brincadeira. A derradeira despedida surgiu já no parque de estacionamento por detrás da bomba de gasolina, onde os nossos carros descansavam. O cheiro do combustível que pairava no ar fazia antever o pior.
Tais palavras, segundo ela, eram fruto de uma longa meditação, mas para mim eram radicais. Acabara de ouvir a palavra “nunca mais” que para mim são levadas à letra, significando nunca mais mesmo.
Com a frieza que lhe era característica, estava assim terminada uma amizade de vinte anos. Vinte anos com altos e baixos. Umas vezes mais perto outras mais longe. O casamento dela, o meu casamento. O divórcio dela, o meu divórcio.
Ela no seu jeito teimosa, naquele que nunca se deixa convencer, disse-me que tinha que terminar daquela maneira porque não queria estar comigo assim com encontros furtivos. Queria mais do que a cor na nossa amizade. Desejava-me só de estar ao pé de mim, mas que era preciso mais e que como eu não correspondia tomara essa difícil decisão.
Percebi que naquele momento o fim chegara e como é hábito na minha pessoa, no que toca a questões sentimentais, não regateei nem discuti. Respeitei e compreendi.
Precisava de sair por cima. Numa movimentação airosa, aproveitei a chegada de um camião cisterna de gasolina que estacionara ali e desapareci por detrás dele, no preciso momento em que ela, debruçada dentro da bagageira, procurava qualquer coisa e não me via. Quando levantou a cabeça já não me encontrou à sua frente.
Guardarei sempre no meu coração e na minha memória a sua meiguice e a sua inteligência bem como as férias, os fins-de-semana, as noitadas e os longos momentos em silêncio que ficava a contemplá-la.
Para sempre ficarão também as nossas fotos, que o tempo jamais apagará.
Entretanto outras bocas beijei, mas o melhor beijo do mundo, o melhor beijo de sempre será sempre o dela, como na canção dos Echo And The Bunnymen: Lips like sugar, Sugar Kisses.
Talvez eu até mereça que as coisas acabem assim. Talvez eu seja mesmo um cabrão de um fornicador que só vê sexo à frente. Ou talvez não. Talvez a vida só me tenha tornado mais frio do que o normal no que respeita aos relacionamentos amorosos.
Não deixa de ser triste quando uma amizade dura vinte anos e acaba só porque uma pessoa não consegue gostar da outra apenas como amiga e manda tudo para trás das costas.
E os conflitos de interesses numa relação? Quem é que os julga? Quem é o mais egoísta? A que deita fora uma longa amizade sob o pretexto de “curar” emocionalmente o seu próprio desejo? Ou o que só quer amizades coloridas e que não se compromete com ninguém?
Aquela que apenas vê o seu lado? Que desiste de tudo e não quer mais acompanhar o meu percurso de vida?
Quem é o mais egoísta? O que vai partindo corações por onde passa? Ou a que dispensa assistir mais ao crescimento do meu filho? Qual dos dois gosta mais do seu umbigo?
A esta distância do acontecimento, consigo conferir-lhe hoje uma grande coragem na sua decisão. Libertar-se de uma obsessão e de um estorvo à sua disponibilidade para amar, posicionando-se novamente no tabuleiro de xadrez que é a vida.
É isso que a torna digna, tão especial e porventura diferente das de mais.
“Não te quero ver mais! Não te quero ver mais à minha frente!”
Pedido concedido.